sábado, outubro 21, 2006

Desinvestimento

O PÚBLICO e a São José Almeida que me desculpem a reprodução não autorizada, mas este merece ser lido na íntegra:

"Desinvestimento

PÚBLICO, 21.10.2006, São José Almeida

Qual o objectivo do ministério? Transformar as escolas em fábricas de salsichas e introduzir prémios
de produtividade? Criar uma espécie de stakonovismo pedagógico?


Orçamento do Estado para 2007 apresenta uma opção política de redução da despesa pública com a função social do Estado, que se manifesta sobretudo no orçamento para a Educação, contemplado com menos 4,2 por cento das verbas do ano passado. Esta opção vem confirmar as teses que afirmam que as políticas adoptadas pelo Ministério da Educação, nomeadamente o novo Estatuto da Carreira Docente, têm como objectivo apenas e só a redução de custos e como base uma visão economicista da sociedade.
Nem de propósito, esta opção política é oficializada no Orçamento do Estado na mesma semana em que os professores realizaram uma greve de dois dias, considerada a maior de sempre no sector. Isto, depois de se terem reunido naquela que foi vista como a maior manifestação de professores e que juntou, segundo a polícia, mais de 25 mil docentes, muitos dos quais nunca se tinham manifestado. Uma greve e uma manifestação que surgem, assim, como um grito de revolta contra uma opção política que mexe profundamente com o tipo de sociedade que estamos a construir. E a que o poder político devia dar atenção, em vez de reagir com atitudes desesperadas como o patético comunicado do Ministério da Educação, "saudando os professores que não aderiram à greve", ou com uma retórica "reformista". Para depois, o secretário de Estado adjunto da Educação, Jorge Pedreira, vir anunciar, numa inqualificável chantagem sobre os sindicatos e os professores, que o ministério altera o estatuto, se não houver mais protestos. Mais: José Sócrates não deveria confundir a nuvem com Juno: os elogios à actual política de educação têm todos origem na mesma área ideológica, o que deveria ser motivo de reflexão por parte do Governo socialista e do PS.
Esta opção política, de inspiração economicista e neoliberal, pelo desinvestimento público na educação - para que a médio, longo prazo se abra a porta à sua privatização, através, por exemplo do cheque-ensino? - tem sido apresentada como uma forma de melhorar o ensino público e tem apostado na estigmatização dos professores e na tentativa de os apresentar como "os maus da fita" e os responsáveis por todos os males da escola pública, como se as escolas e os professores não obedecessem a directivas do ministério.
Mas a atitude que o Governo adopta contém problemas graves que não se prendem só com a forma de tratamento dos professores, mas também com o conteúdo. E deste, o que é já transparente é que o objectivo, nomeadamente do novo estatuto, não é o bem dos alunos, a aprendizagem dos alunos, o sucesso escolar dos alunos. Vendido como uma forma de disciplinar, de meter na ordem os professores, apresentados como preguiçosos, o novo estatuto cria critérios que são questionáveis dentro de uma lógica de mero bom senso e de noção de bem público. Por que razão, por exemplo, só um terço dos professores pode atingir o escalão de "professor titular" (deixemos por comentar o ridículo da designação)? Qual o critério pedagógico para esta quota de um terço? Ou estamos de facto apenas perante um critério economicista de diminuir custos salariais com os professores?E não se venha de novo com a demagogia feita pelo primeiro-ministro, ao dizer que também nem todos os militares podem ser generais. A classe docente não é as forças armadas e a escola não é um quartel - simplificações deste tipo só podem denotar má-fé e falta de seriedade na discussão.
Esta lógica economicista de gerir a escola pública - procurando aplicar-lhe critérios empresariais de avaliação - é expressa num outro ponto do estatuto, o da avaliação dos professores para progressão na carreira. Aqui, a questão polémica não é só a do princípio demagógico e basista do "utente-avaliador", que perpassa na proposta de os encarregados de educação avaliarem os professores. É, sobretudo, o facto de o sucesso escolar dos alunos contar para a progressão na carreira - uma ideia que agora o secretário de Estado admite rever na chantagem que lançou sobre os professores. Qual o objectivo do ministério com esta regra? Transformar as escolas em fábricas de salsichas e introduzir prémios de produtividade? Criar uma espécie de stakonovismo pedagógico?
Será que vamos ter um sistema de ensino assumidamente discriminatório, com escolas boas e escolas guetos, separadas pela linha do sucesso escolar em rankings de separação de classe? Será que vamos assumir que há escolas em que as meninas e meninos de classe média e classe média alta, que frequentam certas escolas, serão os alunos de sucesso com professores classe A, que assim progridem na carreira e sobem ao seu topo? E depois as escolas-problema, com os alunos com dificuldades de aprendizagem, de adaptação, de inserção social, com os alunos de famílias atingidas pelo desemprego, pelo alcoolismo, pela toxicodependência, pelos problemas de disfuncionalidade social, que se reflectem, logicamente, na escola?
As escolas, de meios urbanos ou rurais, em que os problemas sociais são a real razão para o insucesso e o abandono escolar, e nas quais os professores têm de lidar com estes problemas, sem preparação profissional para tal e sem real assistência da Acção Social, que este ano foi mais uma vez reduzida - atribuindo-se um montante que nem sequer chega para comprar todos os manuais escolares, burocratizando-se o acesso à mesma e reduzindo-se o universo dos que a ela têm direito - ou de psicólogos, que continuam a ser pouquíssimos e não chegam para as encomendas. E ainda por cima são estes os professores que vão ficar a marcar passo na carreira, porque não produzem resultados de sucesso, não têm, digamos assim, lucro escolar? Ou vamos fomentar a mentira na atribuição de notas e promover as passagens automáticas, só para contar para as estatísticas de progressão na carreira?
A educação é um direito básico. As escolas em pré-fabricados continuam a aguardar ser substituídas e quase todas a esperar ser devidamente equipadas para que deixe de ser uma raridade os professores terem à sua disposição meios audiovisuais em boas condições e em quantidade suficiente ou simples fotocópias a cores. E a ser possível que no Inverno os alunos não tremam de frio e suem as estopinhas no Verão. Esse devia ser o investimento e não desinvestir-se socialmente com fins economicistas e obedecendo a uma lógica de transformar um direito básico num produto de mercado, criando, como manobra de dissuasão, a estigmatização dos professores."

1 comentário:

Miguel Quintão disse...

Alguém um disse de São José Almeida e eu subscrevo:

“A contrário de São José Almeida (nunca gostei de santos com sobrenome)”
“…suas concepções lunáticas do funcionamento económico e social…”
“…O seu artigo é o grito de dor e desespero de alguém diante do rolo compressor do empecilho dos factos, que avança inexorável sobre ela…!